Hanseníase: o combate à doença e ao preconceito faz parte da história de Marituba

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O último domingo do mês de janeiro celebra o Dia Mundial contra a Hanseníase. A luta pela dignidade das pessoas acometidas pela doença está marcada na história do município de Marituba. Em meados do século XX, mais exatamente a partir do ano de 1942, foi instalado no município o controverso Hospital Colônia de Marituba que funcionou até 1986. O local deixou uma herança de lembranças nem sempre felizes e de lutas contra o preconceito que marcam o cotidiano do município.

Infelizmente a doença ainda faz parte dos números em Marituba. De 2017 a 2021 foram diagnosticados 186 novos casos, segundo dados da coordenação do Programa Municipal de Controle da Hanseníase. A prevenção e o tratamento da doença são realizados em todas as 20 unidades de saúde do município e o tratamento é gratuito.

O Brasil é o segundo país com o maior número de casos no mundo, atrás somente da Índia. Segundo dados do Ministério da Saúde e da Organização Mundial de Saúde (OMS), em 2018 foram detectados 28.660 novos casos no território brasileiro, dentre estes, 1705 casos em menores de 15 anos de idade.

A hanseníase é uma doença crônica infecciosa causada pela bactéria Mycobacterium leprae, que se multiplica lentamente e pode levar de cinco a dez anos para dar os primeiros sinais

A patologia afeta principalmente os nervos periféricos e está associada a lesões na pele, como manchas esbranquiçadas ou avermelhadas, ressecamento e perda de sensibilidade.

O diagnóstico tardio pode deixar graves sequelas, especialmente a incapacidade física com deformidades em mãos e pés, podendo levar também à cegueira. Quem sofre com a doença, além de todos os problemas de saúde, ainda precisa conviver com o estigma e o preconceito.

A Colônia – A antiga cidade hospital foi construída, em Marituba, na Era Getúlio Vargas, no período de 1930, quando foram fomentadas as construções de asilos-hospitais que abrigariam os infectados pela então denominada lepra.

O Hospital Colônia de Marituba foi direcionado à segregação de pessoas infectadas pelo mal de Hansen e ficava distante 12 quilômetros da capital Belém e cinco minutos da então Vila Operária de Marituba.

O local foi idealizado para abrigar 1000 doentes em uma área de 375 hectares de terras em mata virgem. As florestas serviriam como barreiras naturais, objetivando conter qualquer tipo de fuga do doente.

Em 1942 o leprosário de Marituba foi inaugurado com pavilhões que apresentariam em torno de 28 leitos, cada um com 14 quartos com portas externas e sem janelas.
Haviam também acomodações que abrigavam pessoas solteiras. Os mesmos eram organizados por faixa etária e por sexo. Havia os pavilhões que abrigavam o sexo masculino, pavilhões que abrigavam o sexo feminino, os que abrigavam os idosos e outros que abrigavam as crianças.

Professor Geraldo Cascaes fala das lembranças vividas na Colônia

Lembranças – O professor Geraldo Moura Cascaes, 78 anos, é um ex-egresso do Hospital Colônia. Ao apresentar os primeiros sintomas, ele foi diagnosticado com hanseniase. Fato que levou a separação de seus familiares e mudou determinadamente toda a sua vida.

Ele foi internado compulsoriamente aos 10 anos de idade, no ano de 1954, na Colônia de Marituba. De acordo com suas lembranças, ele conta que chegou ao local em um dia de domingo e foi instalado em um pavilhão com outros 32 meninos e um zelador que tomava conta dos pacientes..

“A mudança marcou muito a minha vida. Toda minha família ficou para trás e eu vim para um ambiente completamente estranho. E assim eu fiquei até os meus 16 anos”, recorda.

O professor descreve que na época a Colônia contava com quatro pavilhões especiais. Um pavilhão infantil para os meninos e outro para as meninas, um juvenil para os meninos e outro para as meninas. Tudo era feito pelos próprios pacientes, incluindo a limpeza do local e as refeições.

“Eu cheguei na colônia em em dia de domingo e na segunda-feira já tive que acordar às cinco horas da manhã para começar os afazeres. Quem não tinha o que fazer deveria ir para a missa e depois ir para a escola”, conta.

Geraldo conta que as amizades que nasceram no local fez com que ele se esquecesse das dificuldades na adaptação. Havia uma certa cumplicidade e cuidados mútuos. “Nós éramos solidários uns com os outros e isso tornava a nossa vida menos dolorosa”, ressalta o professor.

Geraldo cresceu na Colônia e reconhece que foi graças ao seu internamento na Colônia que ele hoje conta com uma educação diferenciada e uma profissão. Da vida no local ele também agradece pela sua família e filhos.

“ A parte mais dolorida foi a que diz respeito aos sintomas e as sequelas da doença que eu tive que vencer”, descreve.

Hoje, Geraldo Cascaes é professor da Escola Municipal de Ensino Fundamental Dr. Renausto Amanajás, localizado no bairro de Dom Aristides e ainda mora no que restou da antiga Colônia de Marituba.

Da separação da família, quando criança  à liderança do movimento pelos direitos das pessoas acometidas pela hanseníase.

Edmilson Picanço foi separado dos pais por causa das medidas do Governo Federal e hoje é uma grande liderança na luta pelos direitos.

Edmilson Picanço, 48 anos, é coordenador em Marituba do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan),  uma entidade sem fins lucrativos fundada em 6 de Junho de 1981. O Morhan Marituba foi o primeiro núcleo a ser fundado no Brasil, em 1981.
A luta de Edmilson Picanço pela causa vem de sua história. Filho de hansenianos, ele foi separado de seus pais ainda recém nascido e somente retornou para a família aos oito anos de idade. Infelizmente sua mãe faleceu cinco meses após o retorno do filho.

Instituído como política de saúde no Brasil até a década de 1980, o isolamento compulsório das pessoas atingidas pela hanseníase foi responsável pela separação de milhares de famílias brasileiras – prática repudiada pela Comissão de Direitos Humanos da ONU.

“Nasci na Colônia e por conta da separação tive que ir para o Educandário Eunice Weaver, que era para onde iam os filhos de hansenianos internados compulsoriamente nas colônias. Meu pai e minha mãe eram pacientes com sequelas. Nós éramos quatro irmãos e entre eles uma mulher que minha mãe doou para ser adotada por um amigo. Os outros três foram encaminhados para o educandário”, comenta.

Edmilson explica que no exato momento em que a mãe tinha a criança ela era separada. “Ela não podia amamentar, não podia pegar essa criança nos braços e não podia nem mesmo se aproximar das crianças. A enfermeira vinha com o bebê nos braços e apenas mostrava o rostinho e levava para uma pediatria e de lá elas não viam mais seus filhos”, relata.

Estima-se que cerca de 40 mil crianças tenham sido separadas de seus pais, muitas das quais até hoje não reencontraram suas famílias.

“O destino era o Educandário, creches e muitos passaram por uma espécie de adoção ilegal. É uma história de discriminação, abusos e exploração através de trabalho escravo. Nossos pais já receberam uma indenização por terem sido separados da sociedade e agora nós estamos lutando para que os filhos também recebam”, ressalta Edmilson.

Edmilson explica que na Colônia de Marituba, os pacientes eram internados de forma compulsória onde teriam sofrido segregação por medida profilática do Governo Federal com o objetivo de impedir a propagação da doença.

“O que foi errado, já que desde 1949 já havia sido sinalizada a cura para a hanseníase, então não há justificativa para  terem fechado as colônias somente no ano de 1986. Assim como nós, filhos de pacientes, não deveríamos ter sido separados de nossos pais. Foram medidas profiláticas equivicadas”, declara.

A raiz da luta pela causa está na série de acontecimentos desencadeados pela hanseníase na vida de Picanço.

Ele conta que foi discriminado, alijado da sociedade, sofreu bullying nas escolas por onde passou e ainda foi rejeitado pelo pai quando retornou.

Hoje Edmilson é uma grande liderança nos movimentos sociais em Marituba e ainda mora no bairro de Dom Aristides que se originou com o fim das atividades da Colônia de Marituba em 1986 após a visita do Papa João Paulo II. A Colônia chegou a ter uma população de até 900 pessoas vindas de todo o Estado.

A formação populacional – Em 1976, a nova política de saúde estabeleceu que portadores de hanseníase não poderiam ser mais segregados e sim, tratados e inseridos em seu meio social. Com isso, as colônias em todo o Brasil deveriam ser transformadas em hospitais e asilos.

O modelo de casa originária da Colônia de Marituba

Mas, em Marituba, o processo só teve final em 1986 após a visita de João Paulo II que fez o pedido ao Governo para quebrar a corrente das colônias (fato que remete às grossas correntes que ficavam na entrada da Colônia que hoje se chama avenida João Paulo II.

Nesta mesma época o governador Almir Gabriel revitalizou as colônias no Estado do Pará. A partir daí as pessoas passaram a não estar mais segregadas, porém continuaram dentro da colônia. Muitos constituíram famílias. Outros foram abandonados pela família e não tinham mais para onde ir.

Outros ficaram totalmente dependentes dos profissionais de saúde, por causa das sequelas graves, e tiveram que ficar no Abrigo João Paulo II, cuja finalidade era prestar total assistência médica e social aos pacientes oriundos da colônia que não tinham condições de serem reinseridos por total incapacidade física e abandono familiar.

Hoje ainda existem cerca de 200 pacientes que permanecem na estrutura do que era a colônia. Para estes ainda existe a dúvida: a quem pertencem estas terras. Ou a União, que era quem implantou as colônias, ou ao Estado, ou ao município.

Muitos venderam suas propriedades, alguns ampliaram suas casas e mantiveram a estrutura original. As estruturas que constituíram a antiga Colônia de Marituba ainda permanecem pelos mais de 300 hectares, até a rodovia BR 316 onde ficavam as correntes que separavam a colônia da sociedade.

Assim se forma o bairro que hoje se chama Dom Aristides. O nome  é uma homenagem a Aristides Pirovano, nascido na Itália, bispo católico, membro do Pontifício Instituto para as Missões Estrangeiras e que foi Capelão Auxiliar na Colônia de Hansenianos de Marituba, desde 1978 e falecido em 1997, em sua terra natal. Ele é considerado pai benfeitor dos hansenianos e atribuem a ele a visita do Papa João Paulo II na colônia.

Centro de Referência – Marituba possui hoje um centro de referência especializado na Hanseníase, a Unidade Regional Especializada (URE) Marcello Cândia, o único centro especializado no atendimento e tratamento da hanseníase, atualmente, em todo o Estado.

URE Marcello Cândia

A URE Dr. Marcelo Cândia presta assistência ambulatorial aos infectados e oferece treinamento para os profissionais de saúde no controle da hanseníase no Estado.

Marcello Cândia foi um empresário italiano da rede de medicamentos e que fundou vários centros de acolhida e assistência aos enfermos de hanseníase e ainda casas e igrejas para acolher e promover o trabalho de evangelização missionária para leigos e religiosos.

Ao morrer, Marcello Cândia deixou toda sua fortuna para a Fundação Marcello Cândia em favor das pessoas atingidas pela hanseníase no Brasil. Para vencer o preconceito e para garantir atendimento digno a esses pacientes.

O bairro abriga atualmente um complexo operacional para atender os pacientes. Dele fazem parte: o Abrigo João Paulo II, a URE Marcello Cândia, o Hospital da Divina Providência, a Creche Nossa Senhora de Nazaré e a Paróquia Nossa Senhora de Nazaré.

Da controvérsia sobre as medidas profiláticas de combate à hanseníase até a formação populacional do município, que faz parte da Região Metropolitana de Belém, Marituba se tornou referência no combate à doença. A hanseníase tem cura. O preconceito também e isso é no um fato dentro da realidade do município.

Links:
http://basearch.coc.fiocruz.br/index.php/e114h

https://periodicos.ufpa.br/index.php/revistamargens/article/view/9558

BAÚ DE MEMÓRIAS: O LEPROSÁRIO DE MARITUBA/PA EM MEIO A RECORDAÇÕES DE UMA EX-INTERNA (1940-1970) Moisés Levy Pinto CRISTO1 (Universidade do Estado do Pará), Gercina Ferreira da SILVA2 (Universidade do Estado do Pará), Maria do Perpétuo Socorro Gomes Avelino de FRANÇA3 (Universidade do Estado do Pará)
http://200.239.66.58/jspui/bitstream/2011/13154/1/Artigo_BauMemoriasLeprosario.pdf

Fotos: Patrik Eduardo, Ary Brito e reproduções de documentos históricos.

 

 

 

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